Afinal, quem lacra, lucra?
Vamos deixar ideologias de lado e pensar somente no lado empresarial (business) do desenvolvimento de jogos independentes.
No mês passado, tivemos uma postagem que deu bastante polêmica em um famoso grupo sobre jogos independentes no Facebook. Um jovem incauto postou uma fase leviana e nada original, muito utilizada por pessoas de um determinado espectro político: “Quem lacra não lucra”. Será mesmo?
Independente da sua orientação político-partidária, você já deve ter percebido que o próprio capitalismo está cada vez mais abraçando os discursos de inclusão, sustentabilidade, igualdade e questões de gênero. Grandes marcas já apostam nesses temas em suas propagandas na TV Aberta e na internet, sabe o motivo? Se você disse “pq essas empresas são comunistas/socialistas”, está redondamente enganado! Elas fazem isso porque dá dinheiro!
Bem, entendemos que o rapaz em questão, desprovido qualquer argumento embasado, estava chamando de “lacrar” qualquer tema relacionado às causas sociais ou à grupos minoritários. Sendo assim, resolvemos fazer uma busca e listar alguns jogos independentes que tenham como tema principal de sua narrativa, pautas sociais, culturais e identitárias e que tenham atingido algum objetivo financeiro importante.
This War of Mine
Começamos com esse jogo pois, além de ter sido um grande sucesso de vendas e de crítica no mundo inteiro, a 11 Bit Studios utiliza essa obra-prima como forma de ajudar instituições de caridade. Não só isso, a própria comunidade de This War of Mine se juntou para comprar os DLCs que dão parte do valor errecadado para instituições de cuidam de crianças órfãs. Sim, mesmo sem ter vantagem alguma dentro do jogo, os jogadores podem contribuir com diversos valores (1, 5 ou 10 dólares) para ajudar a causa. O resultado disso? Centenas de milhares de dólares levantados e quase 1.100 reviews positivos somente em UM dos DLCs do jogo, que conta com nada menos que 40 mil reviews no Steam. Será que lucrou?
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CHANGE: A Homeless Survival Experience
Talvez você esteja dizendo que apelamos ao citar o caso de sucesso de This War of Mine. De fato, embora tenha lacrado e lucrado (muito), é um ponto bem fora da curva, por isso o nosso segundo caso é dedicado ao jogo CHANGE: A Homeless Survival Experience, do estúdio Delve Interactive.
O jogo oferece ao jogador uma pequena experiência do que é viver morando nas ruas, pedindo esmolas, procurando algo útil nas lixeiras, enfim, tentando sobreviver.
O interessante desse caso é que a Delve Interactive já havia feito um jogo de entretenimento “padrão”: platformer de aventura, chamado Poncho. A recepção do jogo de aventura não parece ser sido muito boa: em 4 anos de lançado, Poncho está classificado como “Neutro”, com apenas 73 reviews. Já o seu novo jogo, CHANGE, ainda não saiu da fase de Lançamento Antecipado (Early Access) e já conta com mais de 250 reviews e classificação “Muito Positiva”. Qual dos dois jogos você acha que deu mais retorno para os desenvolvedores?
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Banzo: Marks of Slavery
Se você acha que esses temas sociais só dão lucro lá fora, pense de novo, agora vamos falar de produções Brasileiras. Acreditamos que nada pode ser mais “lacração” que um gerenciador de quilombo durante os anos do Brasil Imperial, em que o jogador precisa produzir recursos e treinar guerreiros para saquear as fazendas da região e libertar mais pessoas escravizadas. Não só isso, depois do primeiro capítulo o jogador desbloqueia os orixás que podem ajudar o quilombo: Ogum, por exemplo, concede bônus de chance de vencer as batalhas. Além disso, o quilombo em questão no jogo realmente existiu e era comandado por uma mulher, negra, guerreira: Rainha Zeferina, como era conhecida.
Banzo tem cerca de 1.000 cópias vendidas em poucos meses de lançamento no Steam. Além disso, o estúdio desenvolvedor, Uruca Game Studio, foi contemplado pelo Ministério da Cultura pelo projeto de Banzo e recebeu R$20.000,00 para ajudar no desenvolvimento do game.
O estúdio já prepara um spinoff de Banzo, que também deve contar com uma boa verba de premiação em mérito cultural.
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Aritana and the Harpy’s Feather
Poucas coisas seriam mais “lacração” do que um jogo sobre a nossa cultura indígena. Aritana e a Pena da Harpia é um game que recebeu prêmios que a maioria dos desenvolvedores brasileiros sonha em conquistar algum dia. Foram, nada menos, que seis indicações para finalista dos maiores eventos de desenvolvimento de jogos da América Latina: o BIG Festival e a SBGames, sendo que Aritana saiu vencedor em três dessas ocasiões. Além disso, o game parece agradar bastante o público gringo, já que está com mais de 80% das suas reviews positivas no Steam.
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Queen of Seas e Queen of Seas 2
Continuando nas terras tupiniquins, a franquia Queen of Seas, do estudio brasiliense BIOSZARD Dev, é outro caso a ser considerado. Tendo como tema central as tradições religiosas afro-brasileiras, no primeiro jogo, uma obra pra lá de simples, o jogador controla um filho de pescador que precisa levar suas oferendas para Yemanjá pessoalmente, caminhando no fundo do oceano. Na continuação, o protagonista, agora adulto, precisa resgatar as memórias dos seus vizinhos pescadores, que estão perdidas no fundo do mar, e assim salvar a tradicional festa para Yemanjá em sua pequena vila.
Esses dois títulos possuem cerca de 10.000 cópias vendidas no Steam, além de também ter recebido um aporte financeiro do Ministério da Cultura no valor de R$20.000,00 como mérito cultural.
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Concluindo:
Pessoas jogam, independente da sua orientação política (ou da falta dela), ela jogam! Jogam e consomem! Se existe demanda, existe potencial de consumo e, consequentemente, produtos com essa característica serão bem aceitos, mesmo que seja um mercado de nicho.
Então, você, gamedev, pare de perder o seu precioso tempo querendo desmerecer o trabalho dos colegas que não são aliados com o seu espectro político. No final das contas, eles estão produzindo, publicando e (sim!) lucrando, enquanto você está tentando, sem sucesso, lacrar nas redes sociais, com argumentos rasos.